Reforma assegura ao franqueado o acesso a mais informações para embasar sua decisão de investimento e reduz o campo para demandas judiciais
A nova Lei de Franquia (Lei 13.966/2019), em vigor desde março deste ano, pode significar mais transparência e segurança jurídica para o setor. Ao afastar expressamente a caracterização da relação de consumo no contrato de franquia – entendimento consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que foi incorporado pelo legislador –, o novo texto previne conflitos e contribui para a redução da judicialização.
A reforma da Lei de Franquia assegura ao franqueado o acesso a mais informações para embasar sua decisão de investimento e reduz o campo para demandas judiciais ao estabelecer a inexistência de vínculo trabalhista entre as duas partes do contrato, bem como entre o franqueador e os empregados do franqueado.
Franquia no Brasil
A franquia é uma estratégia de negócios que comercializa o direito de uso de marca ou patente, infraestrutura, práticas comerciais e distribuição. Segundo a ABF, é um arranjo comercial no qual a rede franqueadora concede ao franqueado uma parcela do seu negócio.
O modelo também pode ser classificado como uma espécie de clonagem de negócio. Ele proporciona que o serviço, o conceito e a imagem da marca sejam replicados em diferentes localidades, nas diversas unidades espalhadas pelas regiões de atuação.
Segundo dados da Associação Brasileira de Franchising (ABF), o setor representa atualmente 2,6% do PIB do Brasil e emprega mais de 1,36 milhão de pessoas, principalmente nos ramos de alimentação, saúde, beleza e bem-estar.
Criação americana
Franquia como nos moldes atuais foi uma inovação dos Estados Unidos em 1850, quando a fabricante de máquinas de costuraSinger Sewing Machine Company passou a outorgar licenças de uso de sua marca para terceiros.
A ideia da Singer era aumentar as vendas sem a necessidade de expansão por conta própria. Com o franqueamento do seu produto, foi possível atingir outras áreas dos Estados Unidos.
Em 1898, a General Motors seguiu a mesma ideia e iniciou a expansão de seus pontos de venda, criando o conceito do que hoje é conhecido como concessionária de veículos, comum a todos os fabricantes do ramo.
No mesmo período, a Coca-Cola criou a sua primeira franquia de fabricação. A empresa disponibilizou algumas licenças para que empresários pudessem produzir e comercializar seus refrigerantes em outros locais, garantindo a disseminação do produto no mercado.
Globalização
No Brasil, a primeira franquia surgiu em 1954, na cidade de São Paulo, com a escola de idiomas Yázigi Internexus. Em 1994, já no contexto da globalização e do comércio mundial interligado, o Brasil aprovou a primeira lei específica para tratar do tema: a Lei 8.955/1994, que dispôs sobre o contrato de franquia empresarial (franchising).
Passados 25 anos do primeiro texto legislativo, o Congresso Nacional aprovou, em dezembro de 2019, a nova Lei de Franquia, com previsão para entrar em vigor 90 dias após sua publicação oficial.
Entre as novidades para o setor, estão a possibilidade expressa de adoção da arbitragem para solução de conflitos relacionados ao contrato de franquia (parágrafo 1º do artigo 7º) e a inaplicabilidade das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que frequentemente eram invocadas pelo franqueado em litígio com o franqueador (artigo 1º da nova lei).
Na sequência, algumas decisões importantes do STJ sobre o setor de franquias.
Equilíbrio contratual
Em 2006, ao julgar o Recurso Especial 687.322, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito (já falecido) afirmou que a relação entre o franqueador e o franqueado não está subordinada ao CDC. Em seu voto, ele destacou as ponderações da doutrina sobre a caracterização de consumidor.
“O critério fundamental, sem dúvida, para a melhor identificação da existência de relação de consumo é o da vulnerabilidade, nas suas diversas projeções, porque permite enlaçar o Código de Defesa do Consumidor com a teoria moderna dos contratos, que finca raízes mais fortes na boa-fé e na destinação social”, argumentou.
Ele lembrou as alterações promovidas pelo Código Civil de 2002 na questão dos contratos, disciplinando-os também sob princípios entranhados no CDC.
“Modernamente, portanto, seja no regime do Código Civil, seja no regime do Código de Defesa do Consumidor, há proteção específica para assegurar o necessário equilíbrio contratual, partindo-se do pressuposto de que o contrato não pode ser instrumento de proteção a uma das partes contratantes em detrimento da outra” – afirmou o ministro, ao defender um balanceamento entre os conceitos de vulnerabilidade e de destinatário final.
Menezes Direito disse que, após as alterações do Código Civil, não é mais preciso buscar o abrigo do CDC para proteger o equilíbrio de forças entre as partes contratantes, “porquanto o Código Civil tem suficiente instrumento técnico para calçar as decisões judiciais que ao longo do tempo foram construídas com esse sentido e alcance”.
Contrato complexo
Ao analisar a questão dos contratos no âmbito das franquias, o ministro considerou que a própria lei embute no conceito de franquia empresarial várias modalidades obrigacionais, mencionando outros contratos que estão enlaçados com o de franquia: o de uso de marca e patente, o de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços, o de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios.
“É um dos contratos tidos como complexos, porque prevê uma série de relações jurídicas entre o franqueador e o franqueado”, destacou.
Ele ressaltou que a existência de um contrato padrão – tecnicamente, um contrato de adesão assinado pelo franqueado – pode induzir uma apressada conclusão para considerar o contrato de franquia subordinado ao CDC. Essa linha de pensamento, segundo o ministro, busca a aplicação do artigo 51 do CDC para inibir as cláusulas abusivas.
Entretanto, Menezes Direito disse que não é possível, mesmo em uma perspectiva maximalista, equiparar o franqueado ao consumidor.
Relação diferenciada
“No contrato de franquia, dá-se uma transferência do direito de uso do sistema inerente à franquia conforme o tipo de franquia, sendo o franqueado claramente um elo na cadeia de consumo entre o franqueador e o consumidor. A relação entre eles não é de consumo”, defendeu.
A boa-fé contratual, segundo o ministro, vale para ambas as partes, já que o franqueado contrata sabendo com antecedência aquilo que contrata, não sendo pessoa fora do mercado, hipossuficiente ou ignorante da prática comercial.
“Não se trata nem de relação de consumo nem de consumidor, nem, no meu entender, de equiparação a consumidor. E, o que me parece relevante: não há falar em tal situação na existência de prejuízo indireto ao consumidor. Não é, portanto, caso de aplicação do Código de Defesa do Consumidor”, concluiu.
(Superior Tribunal de Justiça – STJ)