Filme resgata as principais inovações do designer italiano de calçados, como o salto plataforma, relembrando um modelo criado para Judy Garland, com as cores do arco-íris
Logo nos minutos iniciais do documentário “Salvatore: Shoemaker of Dreams”, o narrador recorre a trechos do livro de memórias que o “sapateiro dos sonhos” publicou em 1957. É como se o ator/narrador Michael Stuhlbarg procurasse traduzir a essência do italiano Salvatore Ferragamo (1898-1960), nas palavras do próprio.
Amor pelo pés teria sido a explicação para que o impiedoso desejo de Ferragamo, em criar sapatos. O desejo o acompanha desde menino, quando vivia no sul da Itália, a 90 quilômetros a leste de Nápoles.
Dirigido pelo compatriota Luca Guadagnino, o filme revisita a trajetória pessoal e profissional daquele que possivelmente foi o maior designer de calçados de todos os tempos. Não é exagero quando os especialistas dizem que os “sapatos nunca mais foram os mesmos depois de Ferragamo”.
Além da criatividade no design, o sapateiro fazia calçados confortáveis graças aos seus estudos sobre a anatomia do pé. É essa sua genialidade que o documentário tenta desvendar. Ainda sem data para estrear no Brasil, “Salvatore: Shoemaker of Dreams” fez a sua première mundial no Festival de Cinema de Veneza, encerrado ontem, na Itália.
Vindo de família humilde, com 14 filhos, Ferragamo confeccionou, ainda menino, sapatos brancos para que a irmã usasse na primeira comunhão. Aos 12 anos, ele abriu sua primeira “loja”, em frente da casa onde a família morava, em Bonito, cidadezinha onde nasceu.
“Ferragamo tinha apenas 14 anos quando se mudou para os EUA. E aos 20, já confeccionava botas para Cecil B. DeMille”, comentou Guadagnino. O diretor se refere aqui às criações que o sapateiro realizou para produções como “Os Dez Mandamentos” (1923) e “Rei dos Reis” (1927), assinados por DeMille.
O roteiro do documentário foi construído a partir de material fornecido pela Fondazione Salvatore Ferragamo e pelo museu que também leva o nome do designer. Cenas inéditas realizadas em Super 8 feitas pelo próprio Ferragamo no início do século 20 são alternadas com imagens atuais das fábricas da marca, que explicam como os sapatos são feitos.
Depoimentos com familiares e personalidades do mundo da moda e do cinema também ajudam a estruturar o filme. Participam o diretor Martin Scorsese e os designers Manolo Blahnik e Christian Louboutin, além dos filhos e dos netos, que falam da obsessão de Ferragamo por calçados. Há ainda material de arquivo com a esposa do sapateiro, Wanda Miletti, que morreu em 2018.
Gravações em áudio do próprio Ferragamo, lendo em voz alta os capítulos de sua autobiografia, também costuram a narrativa. Toda a jornada do sapateiro é explorada, passando pela fase de aprendiz e pela incursão em Hollywood, onde criou sapatos para os figurinos de filmes. Ele também calçou estrelas como Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Ava Gardner, Sofia Loren e Greta Garbo.
A trajetória inclui o seu regresso à Itália no final da década de 1920, depois de 13 anos nos EUA. Foi em Florença que Ferragamo fixou residência, abriu a grife de luxo, alcançou o sucesso como empresário e continuou calçando celebridades.
Um exemplo foi a criação, em 1938, da sandália plataforma Rainbow, que Ferragamo fez especialmente para atriz Judy Garland, inspirado nas listras do arco-íris. Foi a homenagem do sapateiro à estrela, que interpretou Dorothy no clássico “O Mágico de Oz” (1939) e cantou a música “Over the Rainbow”, .
Em termos de inovações, além do salto plataforma, Ferragamo também ficou conhecido pelo uso da cortiça nos calçados, pela criação do salto anabela e pela ousadia nas cores – fugindo dos tradicionais preto, branco e bege. Em sua autobiografia, o sapateiro afirmou ter registrado 350 patentes.